Notas de História Regional – XLIII
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A Marinha Grande nos 150 anos do caminho de ferro
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>> Comemora-se hoje, 26 de Outubro de 2006, século e meio da primeira viagem oficial de caminho de ferro em Portugal.
Passava pouco das dez da manhã de 26 de Outubro de 1856, quando o Cardeal Patriarca de Lisboa, na presença da família real, corpo diplomático e altos dignitários, procedeu à bênção das locomotivas que da estação de Santa Apolónia, iriam rebocar as duas primeiras composições com destino ao Carregado, ponto terminal da nossa primeira linha ferroviária.
À inauguração não pode estar presente o ministro Fontes Pereira de Melo, um dos mais entusiastas defensores da implantação dos caminhos de ferro em Portugal.
Terminada a cerimónia, a família real e o corpo diplomático, tomaram lugar no primeiro comboio, composto de 14 carruagens, rebocadas por duas locomotivas, que partiu ao som das salvas disparadas do castelo de S. Jorge.
Pouco depois, uma segunda composição, de nove carruagens, seguia o mesmo destino, com os accionistas da Companhia Real e seus convidados.
À chegada ao Carregado foi servido um banquete a expensas da Companhia, num pavilhão real, armado expressamente para a ocasião.
Escasso quarto de século havia decorrido, desde que os ingleses George Stephenson e seu irmão Robert, em Setembro de 1825, se tinham aventurado a apresentar a público a sua locomotiva "Rocket", uma invenção que revolucionaria o mundo, rodando lentamente na arcaica linha montada entre Liverpool e Manchester.
Um comerciante de Liverpool, teria jurado comer uma roda de locomotiva estufada, se alguma vez um comboio andasse a dez milhas à hora. Os sarcasmos dos cépticos depressa caíram por terra, quando a nova “Northumbrian" de Georges Stephenson galgou a linha de Liverpool a Manchester à velocidade de vinte milhas horárias.
O caminho de ferro chegou a Portugal no mear do século XIX, cuja primeira metade ficou marcada por uma caterva de calamidades, desde as Invasões Francesas entre 1807 e 1811, às lutas liberais que duraram -até 1834, as sedições militares e as duas guerras civis que trouxeram o povo em armas até finais de 1840, deixando o país exangue.
Com a Regeneração, uma plêiade denotáveis homens de estado, entre os quais sobressaiam vultos como Fontes Pereira de Melo, o Duque de Loulé, Rodrigo da Fonseca, o Visconde da Atouguia, e outros, deram início a uma política de fomento e modernidade, cujo principal cavalo de batalha era o caminho de ferro.
Ora, a história da Marinha Grande em matéria de caminhos de ferro é contemporânea da inauguração do primeiro troço de via férrea. Com efeito, e como provam os documentos já publicados pelo distinto Engenheiro Silvicultor, professor C.M. Baeta das Neves, data de 4 de Dezembro de 1856 o despacho do Ministério das Obras Públicas que manda proceder à imediata construção do primitivo troço de caminho de ferro americano, em rails de madeira, conforme o projecto traçado pelo Engenheiro Joaquim Simões Margiochi, "para a construcção do caminho de madeira dos pinhaes de Leiria ao porto de S. Martinho".
Com tracção animal, o velho caminho de tábuas seria renovado em 1861, com a sua substituição por carris de ferro, conforme posterior documentação já publicada pelo Engenheiro Arala Pinto.
Por 1861 vivia-se uma época áurea de crescimento industrial. Como crescimento das vias férreas, o país estava sedento de ferro é a prospecção mineira na região de Leiria, rica em ferro e carvão vegetal, levava à criação da Portuguese Iron and Coal Company por escritura lavrada em Londres a 31 de Março de 1863. Esta companhia, denominada na sua versão portuguesa por Companhia das Minas de Ferro e Carvão de Portugal, tinha como figuras cimeiras no nosso país, o Visconde de Azarujinha e Jorge Croft, este último, concessionário da maioria das explorações mineiras do Distrito de Leiria.
É esta companhia que vai construir o Alto Forno de Pedreanes, inaugurado em 6 de Março de 1866, com grande pompa e circunstância, tendo como mestre de cerimónias o Marechal Saldanha.
Quase apagado na memória local, apesar da intervenção arqueológica dirigida anos atrás pelo Prof. Jorge Custódio, que publicou um pequeno livro a propósito, sabe-se hoje pela documentação recentemente descoberta, que o alto forno de Pedreanes, e confirmando já o avançado por Jorge Custódio, foi um projecto imenso, infelizmente perdido, nele colaborando grandes engenheiros de minas e técnicos de siderurgia, como o seu director Henry Gould, o galês John Gower, que dirigiu a construção das infraestruturas, cuja estrutura principal tinha 12 metros de altura, o engenheiro de minas Linten, e Edward Riad.
Edward Riad e John Gower, vieram directamente da índia, onde tinham construído e colocado em funcionamento os primeiros altos fornos construídos pelos ingleses na sua colónia indiana.
Creio firmemente, que a renovação do caminho de ferro americano em 1861, ordenada, pelo Duque de Loulé, visava já o projecto de Pedreanes, porque o alto forno de Pedreanes não pode ser olhado por um prisma isolado. Lembremos que a própria estrada Leiria-Marinha, no seu 2° lanço entre a Barosa e Marinha, só é arrematada em 5 de Fevereiro de 1864 ao construtor José Domingues Eduardo, outro nome esquecido, que chegou a ser deputado à Câmara de Leiria pela Freguesia da Marinha Grande.
A verdadeira dimensão de Pedreanes, é-nos dada, quer pelo relatório enviado ao Governo, já com o alto forno em plena produção, pelo engenheiro de minas Frederico de Vasconcellos Pereira Cabral, em 28 de Abril de 1866, onde ficamos a conhecer a potência das duas máquinas a vapor e os diversos mecanismos, quer pelos contratos estabelecidos por Henry Gould para o abastecimento de combustível e minério: só por exemplo, a Júlio Augusto Lino, da Marinha Grande, são adjudicados os carretos de três mil carradas de pinheiros, bem como vinte e cinco carradas por dia de minério e carvão, só das minas de Pinheiros, Marrazes e Barosa.
Foi ainda a Companhia de Minas de Ferro e Carvão de Portugal, quem iniciou os modernos trabalhos de mineração na bacia mineira do Leria, algo que ficou, talvez propositadamente, esquecido na exposição sobre as minas do Leria, recentemente organizada pela Câmara Municipal da Batalha.
Neste ano dos 150 anos do caminho de ferro em Portugal, e dos mesmíssimos 150 anos do caminho de ferro na Marinha Grande, o mesmo ano em que o Governo Brasileiro, em Fevereiro passado, inaugurou com grande pompa a primeira fase do restauro e conservação dos vestígios arqueológicos dos altos fornos de Ipanema, erguidos sob a direcção de Guilherme Warnhagen, a quem a Marinha Grande tanto ficou a dever, um homem do ferro que veio para Portugal para modernizar a velha fundição da Foz da Ribeira de Alje, só mesmo a Marinha Grande poderia desprezar a oportunidade de comemorar condignamente os 140 anos da inauguração do primeiro alto forno construído em Portugal, um projecto de tal envergadura, que só em 1961, quase um século decorrido, Portugal viria a ter de novo capacidade para erguer os altos fornos da Siderurgia Nacional.
Também a 6 de Novembro próximo, passam 170 amos da publicação do Decreto de 6 de Novembro de 1836, pelo qual a Marinha Grande foi elevada pela primeira vez a Concelho. Sabe-se hoje quem foram os autarcas, qual o trabalho desenvolvido e porque soçobrou essa primitiva autarquia. Uma caterva de documentação, ainda inédita, a ser publicada e interpretada, permitiria compreender os meandros da política, os interesses particulares, a implantação da maçonaria, todo um conjunto de factores que, no seu contexto e no seu tempo, não permitiram e adiaram a restauração do concelho da Marinha Grande até 1917.
Neste ano de aniversários, com os caminhos de ferro em figura de proa, teria sido ainda o ano exacto para, de uma vez por todas, restaurar completamente e colocar a funcionar a velha locomotiva do comboio de lata, novamente a apodrecer nos estaleiros municipais, após o auspicioso restauro de 1997 por iniciativa da Junta de Freguesia.
150 anos do caminho de ferro na Marinha Grande; 140 anos da inauguração do Alto Forno de Pedreanes; 170 anos da primeira elevação da Marinha Grande a Concelho!
Demasiadas oportunidades perdidas, que poderiam contribuir decisivamente, sem grandes dispêndios, para ajudar a fazer entrar a Marinha Grande pela porta grande dos roteiros culturais nacionais.
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